quarta-feira, 2 de março de 2005

A Imperadora dos palcos

Amélia Rey Colaço (1898 – 1990)

Hoje faria 107 anos, se fosse viva. É um ícone do teatro português. A ele dedicou toda a sua existência.
Com o actor Robles Monteiro fundou a sua própria companhia de teatro (a companhia Rey Colaço-Robles Monteiro), que duraria cerca de 53 anos.
Foi uma grande impulsionadora da arte e amava Sintra, onde tinha uma casa de férias em Fontanelas. Na rua onde viveu, nesta pequena aldeia, reside uma placa com um poema, escrito pelo também já desaparecido e poeta popular José Valentim:

«Lembro a casa passo
o teatro verdadeiro,
com Amélia Rey Colaço
e seu esposo Robles Monteiro»


Foi pela mão desta grande actriz que, em 1976, o Grupo de Teatro de Fontanelas e Gouveia ( um dos mais antigos teatros amadores de Portugal), leva a revista “Que se passa camarada” ao programa de televisão “TV Palco” de Igrejas Caeiro.
Fernando Dacosta publicou, aquando do centenário do seu nascimento, na revista Visão, um excelente perfil que vale a pena recordar:

Descalça no jardim
Natália Correia e Fernanda de Castro chamavam-lhe, pelo seu porte aristocrático e energia marcial, a Imperadora.
Oriunda de famílias de aristocratas e artistas (o pai era o compositor Alexandre Rey Colaço, professor dos príncipes, a avó, a célebre Madame Reinhardt, com salão literário e musical em Berlim), Amélia recebe, desde criança, uma formação invulgarmente requintada.
Apaixona-se pelo teatro aos 15 anos, ao ver, na Alemanha, os espectáculos de Max Reinhardt. Recebe aulas de Augusto Rosa e, a 17 de Novembro de 1917, estreia-se no Teatro República, na peça Marinela. Para fazer a personagem, uma rude vagabunda, aprende, durante meses, a andar descalça e a usar farrapos, no interior do jardim do seu palacete. O êxito é retumbante.
Casa, em Dezembro de 1920, com o actor Robles Monteiro, um ex-seminarista vindo da Beira Baixa, para trocar, a conselho do bispo (entusiasmado com as suas récitas religiosas), o altar pelo palco. Rapidamente os dois fundam uma companhia própria - será a mais antiga (durou 53 anos) da Europa.
Amélia imprime aos seus espectáculos um cunho de elegância, de bom-gosto, de invenção, de requinte desconhecidos entre nós. Chama pintores prestigiados para colaborarem com ela, casos de Raul Lino, Almada Negreiros, Eduardo Malta. Contrata nomes que são ídolos do público (Ângela Pinto, Palmira Bastos, Nascimento Fernandes, Alves da Cunha, Lucília Simões, Estêvão Amarante, Maria Matos, Vasco Santana) e revela, fazendo escola, novos actores, como Raul de Carvalho, Álvaro Benamor, Maria Lalande, Assis Pacheco, João Villaret, Augusto de Figueiredo, Paiva Raposo, Pedro Lemos, Eunice Muñoz, Carmen Dolores, Maria Barroso, João Perry, Madalena Sotto, Helena Félix, Rogério Paulo, José de Castro, Lurdes Norberto, Varela Silva, João Mota.
Robles Monteiro, um dos maiores ensaiadores do teatro português, apaga-se deliberadamente para a projectar. «Toda a sua vida foi feita em função de mim. Trocou as suas ambições pelas minhas. Tinha os seus sonhos próprios e pô-los de lado pelos meus sonhos», afirmar-nos-á Amélia Rey Colaço.

Época de oiro
A concepção que Amélia Rey Colaço tinha do que devia ser uma companhia nacional resultou em pleno. Fará no século XX o mesmo que Almeida Garrett no XIX.
Actuando em vários planos, estrutura, primeiro, uma companhia coesa e disciplinada, metódica e exigente. A seguir, joga na dignificação social do actor, conquistando para ele um estatuto de superioridade inovador. Organiza, ao mesmo tempo, um reportório ambicioso, diversificado, alternando contemporâneos com clássicos, estrangeiros com portugueses. Abre (e nisso foi única) as portas à dramaturgia nacional, fomentando-a, recompensado-a como ninguém mais fez depois dela.
O incentivo dado aos nossos autores fê-los conhecer, contra a Censura e o dirigismo cultural, uma época de oiro. José Régio, Luiz Francisco Rebello, Bernardo Santareno, Romeu Correia, Miguel Franco são alguns dos que, então, se afirmaram.
«Nesse período admirável de ressurgimento da nossa dramaturgia são levadas à cena 116 peças de autores nacionais, 63 em estreia absoluta», anota Vítor Pavão dos Santos, para quem a Companhia Amélia Rey Colaço/Robles Monteiro «é a espinha dorsal do teatro português do século XX».
«Amélia Rey Colaço soube, como ninguém, manter a chama do teatro apesar da ditadura. Conheci muitas pessoas do teatro e ela foi a única que me ensinou, pessoalmente, algo dos seus diversos ofícios», comenta-nos o dramaturgo Mário Sério.

Salazar admirava-a
Com ousadia revela, por outro lado, o que de mais avançado surge no mundo: Jean Cocteau, Jean Anouih, Lorca, Valle Ínclan, Alejandro Casona, O'Neill, Tennessee Williams, Arthur Miller, Pirandello, Eduardo De Filippo, Diego Fabri, Max Firisch, Ionesco, Durrenmatt, Albee, Pinter.
Apaixonada por Brecht, pede ao ministro da Educação (entidade que tutelava o teatro Nacional) uma audiência. Ao entrar no seu gabinete, o governante diz-lhe: «Se vem cá pedir para eu autorizar esses comunistas de que gosta, o Brecht, o Camus, o Sartre, pode ir-se embora». Amélia pára e diz: «Então, boa tarde», e dá meia volta.
Salazar gostava do seu porte altivo e grave. Apreciava-lhe a fineza, a inteligência, a cultura. Ficava-se a ouvi-la, quando se deslocava aos ensaios gerais das suas peças (nunca ia a estreias), com curiosidade, com prazer. Ela não lhe fazia pedidos, ele não lhe agredia a independência.

Anciã belíssima
Aos 90 anos, Amélia Rey Colaço era uma anciã belíssima, serena por fora, vibrátil por dentro. Luminosidades intensas fulguravam-lhe com frequência o olhar, como se a alma, a energia se quisessem libertar do corpo que as arqueava.
Era um ser notável de sedução, de ironia, de humildade, de orgulho. Como poucos, sabia aproximar-se e distanciar-se, revelar-se e ocultar-se. Tornou-se numa personagem ficcionada, encenada por si própria com, por vezes, genialidade.
O reverso dos aplausos, das benesses, chegar-lhe-ia penosamente à medida que a companhia se decompunha por incêndios, por bloqueios, por incomprensões, em agonia lenta, densa. «O meio fechou-se, os críticos estavam, no final, contra nós», recorda-nos Mariana Rey Monteiro.
Em princípios de 1974, Amélia Rey Colaço regressa ao S. Luiz, de onde partira. O ciclo fecha-se. Pouco depois dá-se o 25 de Abril. Percebendo que a vão encarar como um símbolo do Estado Novo, suspende a companhia e sai de cena.
Assume a injustiça com dignidade, com discrição. Em silêncios imerge no outro lado da ribalta, o da penumbra, o do apagamento. Para trás dela ficam - o futuro irá comprová-lo - espectáculos (a Castro, O Processo de Jesus, A Visita da Velha Senhora, Tango) que são obras-primas, patrimónios preciosos da nossa cultura, da nossa memória.

Recordações nefastas
«Incêndios em teatros», e «datas em 8» perseguiram dramaticamente a actriz durante a vida. Quatro edifícios onde actuou foram, com efeito, pasto das chamas, ruindo dois por completo.
A série começa no São Luiz (ex-Teatro República), que arde pouco antes de Amélia se estrear. Logo a seguir, o fogo obriga-a a deixar o Trindade, onde se instalara. Radicada no D. Maria, por concessão pública, vê as labaredas reduzirem-no a escombros na noite de 2 de Dezembro de 1964. Três anos mais tarde, o Avenida, onde se acolhera, transforma-se em cinzas. Novo incêndio (no Capitólio) obriga-a, em 1970, a nova mudança (para o Trindade).
As datas terminadas em 8 revelam-se-lhe; entretanto (anota a revista Guia na sua última edição), um flagelo. A avó materna e o pai, por exemplo, falecem em 1928, a mãe em 1938, o marido e o genro em 1958.
Dificuldades graves obrigam-na a deixar, em 1968, a moradia onde nascera, na Lapa. A sua companhia é oficialmente extinta em 1988, altura em que a actriz se vê obrigada a leiloar o recheio da casa do Dafundo (cedida pela marquesa do Cadaval) e a abandoná-la. A 8 de Julho morre, em Lisboa, junto da filha.”

Fernando Dacosta, In Visão, 26 de Fevereiro de 1998

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